Tenho cá para mim que a D. Alzira não sabe o bem que me faz. Nem eu. Todas as manhãs desce ela a rua do Raio com a saca do pão do costume. E todas as manhãs me cumprimenta:
– Bom dia menina.
Todos os dias isto, mais nada durante os últimos oito meses.
A D. Ana, que trabalha na retrosaria em frente, confidenciou-me que estas viagens matinais da D. Alzira não são mais que pretextos meticulosos para meter conversa com o Sr. Mesquita da tabacaria.
– Veja bem, Menina Teresa: a Alzira todos os dias, ate aos sábados, desce toda a escadaria, à mesma hora, dizendo as mesmas coisas, fazendo o mesmo percurso. Às nove e um quarto fecha a porta de casa, às nove e dezassete já cumprimenta o Sr. Olivais na mercearia e pelas nove e vinte já canta “bom-dia” como os melros, cá em baixo no cruzamento. É vê-la passar toda airosa no seus sessenta e muitos, a cara pintada de fresco e o cabelo amontoado num gancho.
Respondo à D. Ana que me parece bem a elegância da D. Alzira. Ela olha-me de soslaio, dá-me um até logo mais seco do que o costume e deixa-me só, enfim. A D. Ana anda à volta dos quarenta, veste preto e não se maquilha.
É por isso que tanto prezo a D. Alzira. Pela brevidade do que me dá; a possibilidade de continuar no meu silêncio. Enquanto ela vai rua acima, rua abaixo, eu imagino as dores, as alegrias e os sonhos da D. Alzira. Imagino-lhe o almoço, se tem filhos ou netos. Uns dias para mim é solteira, outros viúva e outros não é nada. Algumas vezes vejo-a de camisa de dormir, outros de lingerie e outros nua. Esta possibilidade de viajar na sua rotina, dá-me a certeza de que não estou sozinha. Consigo ver-me na vida e estórias dos outros. Deixo de ser a Ana, a narradora paciente e passo a ser quem quiser, da maneira que melhor me aprouver.
Há tantas maneiras de ser tanta coisa. Ha quem só trabalhe, há quem só pense, há quem só chore ou ria. Há quem prefira comentar os outros para dentro e há quem o faça para o público. Eu cá prefiro alimentar-me das romarias matinais da D. Alzira pela rua do Raio, das três únicas palavras que lhe oiço e do tanto que não lhe sei.
Que viagens faço eu todos os dias, cada uma sempre diferente da anterior graças ao corrupio da D. Alzira.
Por isso digo que a D. Alzira não sabe o bem que me faz.
Nem eu.
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